Miasthenia: Uma metaficção historiográfica sobre a sobrevivência ancestral; confira entrevista
Postado em 20/11/2025


Para o Miasthenia, o Black Metal nunca foi apenas sobre música, mas uma ferramenta de resgate e combate. Em seu mais recente trabalho, “Espíritos Rupestres”, a veterana banda brasileira atinge o ápice dessa proposta ao fundir literatura, pesquisa acadêmica e sonoridade extrema. O álbum nasce do conto “A Bruxa Xamã”, escrito pela vocalist, tecladista e historiadora Susane Hécate, e serve como uma poderosa metaficção historiográfica que desafia a visão oficial da colonização.

Ao dar voz à resistência indígena e aos levantes silenciados — como a Guerra dos Bárbaros e a perseguição inquisitorial —, o disco transforma documentos históricos em uma trilha sonora metálica. Nesta entrevista, Susane nos conduz pelos bastidores dessa ópera pagã, detalhando como seus 25 anos de pesquisa se conectam com a música e na recusa em aceitar a passividade histórica, provando que a memória ancestral é uma arma que ainda ressoa no presente. Além de Susane, o Miasthenia conta com Thormianak (guitarra), Aletea (baixo) e Lith (bateria).

“Espíritos Rupestres” parte de um conto escrito por você, “A Bruxa Xamã”. Como surgiu a ideia de transformar essa narrativa literária em um álbum conceitual dentro do Black Metal?

Susane Hécate – A ideia do conto histórico surgiu depois da escrita das letras do álbum Espíritos Rupestres na forma de uma prosa poética com um início, meio e fim. As músicas e as letras me inspiraram a tecer o conto numa linguagem poética para dar mais vida à história da Bruxa Xamã. A proposta de integrar narrativa literária e musical já estava presente em nossas ideias desde o nosso primeiro álbum conceitual “Supremacia Ancestral” (2008). De lá para cá gravamos mais dois álbuns conceituais: “Legados do Inframundo” (2014) e “Antípodas” (2017). Mas só no álbum “Espíritos Rupestres” isso se concretizou na forma de narrativa literária, porque foi preciso tempo para estudo de escrita criativa e dedicação à essa forma de escrita centrada na trajetória de uma personagem.

A protagonista atravessa tempos históricos e espirituais, da pré-história às guerras indígenas contra o colonizador. Como você enxerga essa figura da xamã como símbolo de resistência ao longo da história brasileira?

Susane Hécate – A Bruxa Xamã, representa a resistência espiritual e ancestral à cristianização forçada iniciada com a colonização portuguesa. Os xamãs são figuras de muito poder, espiritualidade e sabedoria para os povos originários, eles são guardiões importantes da história e dos saberes ancestrais. São personagens fortes e potentes que podem viajar para diferentes planos cósmicos para curar, obter conhecimento e se conectar com os espíritos, animais e plantas. A colonização buscou destruir tudo aquilo que rivalizava com a ortodoxia religiosa cristã, perseguindo, especialmente, os xamãs, e acusando-os de bruxaria e feitiçaria, cunhando uma imagem demoníaca, infame e perversa com a finalidade de destruir o poder e influência que eles tinham. A Bruxa Xamã incorpora a resistência de um xamanismo antigo, recusando a conversão ao cristianismo, mas também se recusando à submissão à exploração colonial.

A música “Guerra dos Bárbaros” remete diretamente a conflitos históricos como os levantes indígenas do século XVII. De que forma podemos pensar o papel dessas guerras na resistência dos povos originários, e de que forma isso ressoa nos dias atuais?

Susane Hécate – Essas histórias de resistência à dominação colonial por meio de guerras ou conflitos armados foram muito silenciadas na historiografia acadêmica e na cultura histórica dos brasileiros. Crescemos ouvindo histórias que enalteceram a superioridade dos europeus na conquista da América, reafirmando o genocídio e desaparecimento dos povos indígenas ou tratando-os como seres inferiores, vitimizados e passivos diante da exploração colonial. Aprendemos assim a ignorar completamente a nossa ancestralidade indígena e a ver os povos originários como aqueles sem história e sem protagonismo. Essas imagens históricas generalizadas e preconceituosas tem efeitos ainda no tempo presente, sobretudo, na forma como nossa sociedade se relaciona com os povos indígenas, sem lhes reconhecer como sujeitos de identidades plurais e de direitos fundamentais. Por isso, as histórias que remetem às guerras movidas pelos povos originários em resistência à dominação colonial são partes fundamentais hoje no reconhecimento e fortalecimento dos povos indígenas como sujeitos políticos.

O disco dialoga com episódios como a Inquisição no Brasil e a repressão às práticas indígenas. Como foi o seu processo de pesquisa histórica para tratar desses temas com profundidade e respeito dentro da linguagem do Metal extremo?

Susane Hécate – Já desenvolvo pesquisa acadêmica sobre estes temas há mais de 25 anos. Fiz mestrado e doutorado em História tomando como fontes de análise as crônicas coloniais e alguns relatos de extirpadores de idolatrias sobre a espiritualidade e as práticas sagradas dos Incas. As crônicas e estes relatos, especialmente aqueles escritos por padres e missionários católicos, também fizeram parte do processo de perseguição religiosa movida pela Inquisição na América. Além disso, nos últimos anos venho realizando pesquisas sobre o ensino de história indígena, pensando em maneiras de ensinar outras histórias que reconheçam e respeitem a ancestralidade e protagonismo indígena na história. As minhas letras são baseadas nessa experiência de pesquisa.

Em faixas como “Cárcere da Inquisição” e “Saga de Mil Povos”, vocês abordam diretamente a opressão colonial. Qual a importância de resgatar essas histórias que muitas vezes não fazem parte do ensino tradicional nas escolas ou que muitas vezes não recebem a melhor atenção em sala de aula?

Susane Hécate – Acho que essas histórias ajudam a desnaturalizar a imagem racista de nossos ancestrais como seres inferiores sem sabedoria ou que aceitaram pacificamente a dominação europeia. No ensino de história essas histórias de resistência mostram que é possível resistir e sobreviver à dominação colonial, porque as guerras e a escravidão não podem ser naturalizadas na história, são temas sensíveis que ainda precisam ser desvelados no presente.

A canção “Transmutação” sugere que o fim físico da personagem da trama não é o fim espiritual, mas o início de uma nova forma de resistência. Você poderia falar mais sobre essa ideia de “espírito ancestral” como continuidade e legado de luta?

Susane Hécate – Sim, a Bruxa Xamã morre fisicamente, mas sobrevive espiritualmente, porque essa é a história de uma resistência coletiva ao colonialismo que ainda persiste. Como um espírito que pode ser evocado em rituais ou possuir os corpos dos vivos, as memórias e saberes ancestrais podem sobreviver em nossas ações e pensamento no tempo presente, dando continuidade a esse legado de luta.

O álbum também fala de reconexão com o sagrado indígena e pagão, temas que ainda geram desconforto em certos setores. Como você percebe a recepção desse tipo de conteúdo por parte do público brasileiro, especialmente dentro do Metal, que infelizmente tem seguido por lados contrários do que o estilo sugere?

Susane Hécate – O Brasil é um país cheio de contradições e conservadorismos, e o Metal não está alheio a isso. As religiões fundamentalistas cristãs crescem cada vez mais disseminando o ódio e a intolerâncias às religiões ou crenças não cristãs, especialmente, as de matrizes africanas e indígenas. Embora exista no Metal pessoas de opinião conservadora e alinhada com a perspectiva política de religiões pentecostais e opressoras, hoje os temas ligados à espiritualidade dos povos originários vêm ganhando mais reconhecimento e importância no Metal, graças mesmo à presença e atuação dos próprios indígenas no tempo presente.

A sonoridade do álbum mantém o som característico do Miasthenia, mas valoriza também os elementos atmosféricos. Como você trabalhou os teclados e vocais para que a música dialogasse com o enredo e as imagens do conto?

Susane Hécate – Primeiro imaginamos a história e depois compomos o instrumental de guitarra, teclado, baixo e bateria. Em seguida é que escrevo as letras guiada pelos sentidos, emoções e visões que a sonoridade proporciona. Então é o contrário, primeiro vem os teclados, inspirados mais livremente numa concepção, ideia, sentimento ou acontecimento, sempre em torno de que desejamos transmitir com a música, e só por último é que vem a letra, para que haja uma fusão literária e sonora.

A arte do disco, as letras e os arranjos formam um todo coeso, quase como uma trilha sonora cinematográfica. Há planos de transformar o conto ou o álbum em uma obra audiovisual no futuro? Creio que até mesmo um mini-documentário seria uma opção interessante.

Susane Hécate – Sim, seria fantástico transformar esse conto num filme ou vídeo documentário, mas estamos planejando há dois anos gravar um videoclipe com a presença da Bruxa Xamã. Uma performance já foi feita por mim no vídeo teaser de lançamento do álbum “Espíritos Rupestres” em 2024, mas agora estamos trabalhando na produção de um próximo videoclipe com cenas inspiradas no conto histórico.

O uso do português e a escolha de títulos como “Tapuia Marcha” mostram claramente uma identidade cultural própria. Qual é a importância, na sua visão, de cantar em português e explorar esses vocabulários na construção da obra?

Susane Hécate – Desde o início do Miasthenia em 1994 a nossa proposta é a de entoar as letras em português, como parte da nossa identidade e também para soar mais direto e compreensível ao público brasileiro. Cantar na língua em que dominamos mais plenamente os sentidos, permite dar mais profundidade poética aos temas que abordamos. Isso sempre foi muito desafiador, mas acabou se tornando uma marca da banda e nossa proposta musical.

O Miasthenia sempre foi uma banda singular ao unir Metal extremo com pesquisa histórica e uma perspectiva decolonial. Na sua visão como historiadora, qual o papel da arte — e do Metal em particular — na preservação e na reinterpretação da memória coletiva?

Susane Hécate – Como historiadora e professora universitária nesse campo, vejo na arte um espaço de expressão onde a imaginação e as emoções pode fluir mais livremente. Na música temos mais liberdade poética para contestar, odiar e expor nossa raiva, e é assim que vejo a arte que produzimos no Miasthenia. Abordamos temáticas históricas por meio de metaficções historiográficas e de uma estética muito sombria, maldita e agressiva inspirada no Black Metal. Como metaficção historiográfica nos apoiamos no prazer lírico e estético de subverter aquilo que foi tomado como verdade histórica sagrada e inquestionável. A música é também uma forma de rebelião cultural e não aceitação de dogmas e dominações.

Pensando em sua atuação como historiadora, que outros temas você imagina que o Miasthenia possa abordar no future dentro deste escopo do nosso continente e do Brasil? Há algo que ainda não exploraram e que vocês sentem vontade de trazer para um próximo álbum?

Susane Hécate – Sim, há um universo enorme de temas (práticas inquisitoriais, cosmogonias, saberes antigos, rituais e guerras de resistência dos povos originários da América pré-colonial e colonial) e sonoridades que se ligam ao conceito de resistência pagã do Miasthenia numa estética Pagan Black Metal. No momento tenho avaliado a abordagem de alguns temas, pesquisando e lendo muito para ver onde consigo abrir uma porta de inspiração relacionada ao tipo de construção musical que começamos a idealizar. Ainda é surpresa, estamos ainda no início da construção.

Por fim, “Espíritos Rupestres” soa como uma síntese de tudo o que o Miasthenia construiu até aqui, mas também aponta para algo novo. Como você vê esse álbum dentro da trajetória da banda? Ele é um ápice, um novo começo ou ambos?

Susane Hécate – Acho que esse álbum representa os dois, é realmente o ápice com a evolução de um processo de construção musical no qual vínhamos trabalhando arduamente nos álbuns anteriores, mas é também um novo começo, porque a partir deste álbum, que se apresenta em formato literário e musical, pretendemos buscar novas formas de composição artística. Que os espíritos ancestrais nos deem força e inspiração para isso! Agradeço pela oportunidade de falar nessa entrevista sobre nossas concepções líricas e musicais! Obrigada pelo apoio ao Miasthenia!

 
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